domingo, 29 de março de 2009

Glorificado (V DQ - B)

Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado. (Jo 12, 23)

A passagem de hoje (Jo 12, 20-32) marca uma virada fundamental no Evangelho de João. Até neste momento da narrativa, Jesus fala, em diversas vezes, sobre a sua "hora." Logo no início do Evangelho, na Bodas de Caná, Jesus afirma categoricamente à sua mãe dizendo, "Mulher... minha hora inda não chegou" (2, 4). Mais adiante, Jesus diz à samaritana, "Mulher, acredite em mim. Está chegando a hora..." (4, 23). Em outras duas ocasiões, quando Jesus estava ensinando no Templo, o autor do Evangelho de João afirma, "Então tentaram prender Jesus. Mas ninguém pôs a mão em cima dele, porque a hora dele ainda não tinha chegado" (7, 30) e, "E ninguém o prendeu, porque a hora dele ainda não havia chegado" (8, 20). Mas, no trecho de hoje, ouvimos Jesus declarar claramente, "Chegou a hora..." Afinal, que "hora" é esta da qual Jesus e o Evangelho tanto fala? Jesus mesmo explica, "... a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado."

Aqui, aparece outra palavra-chave da Teologia Joanina: δοξασθῇ (doxasthēi), ser glorificado, do verbo δοξάζω (doxazō), glorificar, do substantivo feminino δόξα (doxa), glória. A expressão "a glória do Senhor" é muito usada no Antigo Testamento para falar sobre a presença poderosa e libertadora de Deus no meio do Povo, na Tenda, no Templo, na Criação, etc (Cf. Ex 16, 10; Nm 14, 10; Ez 43, 4; Sl 19, 2). Já no prológo do Evangelho de João implica-se que a glória de Deus está presente na Palavra Encarnada, "E a Palavra se fez homem e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória: glória do Filho único do Pai, cheio de amor e fidelidade" (1, 14). Se olharmos a atividade de Jesus, vemos que nela a glória de Deus se torna visível (Cf. 2, 11; 11, 4, 40). No entanto, a manifestação plena da glória de Deus em Jesus Cristo se dá num momento particular, ou melhor, numa hora específica: na hora em que o Filho do Homem é levantado/crucificado (3, 14). É exatamente nesta "hora", na hora da cruz, em que a glória de Deus é totalmente revelada e Jesus é, então, glorificado, atraindo todos para ele (Cf. 12, 32). Jesus mesmo diz, "...Foi precisamente para esta hora que eu vim" (12, 28).

Para João, Jesus Crucificado é a manifestação inequívoca e plena da glória do Senhor. Seu Evangelho apresenta a cruz como o auge da ação amorosa e libertadora de Jesus. Na hora da cruz, Jesus é glorificado e o mundo, julgado (cf. 12, 31). Talvez, seja importante deixar claro que a cruz de Jesus não é, de maneira alguma, uma exaltação da violência ou do sofrimento masoquista. Seria uma contradição! Jesus sempre promoveu a vida (Jo 10, 10) e até ficou perturbado diante do sofrimento a ser infligido sobre ele (12, 27). O quê o Evangelho de João proclama é que em Jesus Crucificado se dá a glorificação do amor; do amor-doação, do amor-serviço, do amor salvador e libertador. A morte de Jesus na cruz não é sinal de derrota ou fracasso, mas sinal de coragem, fidelidade e vitória; vitória do amor-não-egoísta, que liberta e dá vida. Assim, a hora em que o Filho do Homem é crucificado é também a hora em que Ele é glorificado.



Senhor Jesus Cristo,
ajudai-nos a ver na vossa vida, paixão e morte
os sinais da páscoa;
sinais da ressurreição,
da vitória do amor e da vida.
Amém.



domingo, 22 de março de 2009

Acreditar (IV DQ - B)

Assim, todo aquele que nele acreditar, nele terá a vida eterna. (Jo 3, 15)

O Evangelho de hoje (Jo 3, 14-21) precisa ser entendido sob a ótica do batismo. Embora nesta passagem não haja menção explícita sobre o rito batismal pela água, o tema do batismo é o pano de fundo da conversa de Jesus com Nicodemos. A passagem lida com a questão da qualidade da fé (crer) de quem está sendo batizado. Nela, o verbo πιστεύω (pisteuō), acreditar, aparece 5 vezes e 98 vezes em todo Evangelho de João. É uma palavra-chave que serve não apenas para entendermos a passagem de hoje, mas toda a Teologia Joanina.

Em todo Evangelho de João, as pessoas que encontram Jesus (Nicodemos, a Samaritana, o Funcionário do Rei, o Cego de Nascença) são questionadas a respeito de sua fé (acreditar) e são chamadas há uma decisão de vida, acreditar ou não em Jesus. No trecho de hoje, vemos que acreditar em Jesus está totalmente associado com o mistério de sua paixão/glorificação na cruz. "Assim, como Moisés levantou a serpente no deserto, do mesmo modo é preciso que o Filho do Homem seja levantado. Assim, todo aquele que nele acreditar, nele terá a vida eterna" (3, 14-15). Portanto, acreditar em Jesus implica numa entrega total a ele, assim como ele se entregou totalmente, na cruz, pelo mundo.

De acordo com professor Demetrius Dumm, OSB, “É tentador pensar que acreditar em Cristo significa simplesmente afirmar o Credo, ou admitir que Jesus existiu, operou milagres, morreu e ressuscitou dos mortos. Aceitar estas verdades são importantes, mas isto não é o quê “acreditar” significa nesta passagem. Na verdade, uma pessoa pode sinceramente afirmar todos estes fatos teoricamente e continuar a viver egoisticamente. Acreditar nAquele que ‘foi levantado’ significa nada menos do que fazer sua auto-oferenda parte de nossa própria vida, através do cuidado pelo outro; significa viver de maneira não egoísta. Esta é a única maneira de fé (crer) que nos dará vida eterna” (minha tradução e meus destaques).


Senhor Jesus Cristo,
Ajudai-me a crer em vós,
Não somente com os lábios,
com a inteligência ou com as emoções,
Mas com os pés, com as mãos,
pela via de uma vida não egoísta,
pela via da reconciliação e da libertação,
enfim, pela via da entrega total no amor.
Amém.




domingo, 15 de março de 2009

Templo (III DQ - B)

Destruam esse Templo, e em três dias eu o levantarei. (Jo 2, 19)

Situada em Jerusalém e perto da Páscoa, a passagem de João 2, 13-22 retrata a atitude de Jesus diante do Templo. Nos Evangelhos sinóticos, a limpeza do Templo aparece pouco antes da sua paixão. Neles, esta ação dramática de Jesus, que se mostra cheio de indignação, é vista como o estopim que leva as autoridades a buscarem sua prisão e condenação.

Já em João, esta cena aparece logo no início do Evangelho, retrabalhada para servir suas perspectivas teológicas. Primeiro, a passagem serve para demonstrar a oposição das autoridades judaicas à Jesus desde do início do seu ministério, demonstrando a intrínsica incompatibilidade entre eles. Segundo, o trecho serve para anunciar que o verdadeiro Templo, onde Deus agora habita, é o corpo de Jesus; que será destruído pelas autoridades, mas que ressuscitará.

Assim, o Templo de Jerusalém, que havia sido convertido em οἶκον ἐμπορίου (lit. casa de empório), casa de comércio, é substituído pelo corpo de Jesus, lugar do verdadeiro encontro e comunhão com Deus.


Senhor Jesus Cristo,
vós sois o novo Templo de Deus levantado entre nós.
Concedei-nos semelhante indignação profética
que vos levastes a limpar o Templo de Jerusalém.
Queremos construir uma humanidade
livre de toda forma de exploração econômica.
Que o Templo do vosso corpo
nos leve a uma constante comunhão com Pai
e com os nossos irmãos e irmãs.
Isto vos pedimos,
na força do vosso Espírito.
Amém.



sábado, 7 de março de 2009

Se transfigurou (II DQ - B)

E se transfigurou diante deles. (Mc 9, 2b)

Apenas uma palavra carrega uma variedade de sentidos. Vemos isto no caso da palavra μετεμορφώθη (metemorphōthē), traduzida no versículo acima como “se transfigurou.” Ela deriva do verbo grego μετα-μορφόω (meta-morphoō), literalmente “mudar de forma,” ou, “trans-formar.” Notem que temos no português o verbo “meta-morfosear,” diretamente derivado do grego. Assim, poderíamos dizer que Jesus “se metamorfoseou diante deles.”


O verbo metamorfosear carrega o sentido de mudança de forma, de estrutura. A imagem da lagarta ilustra bem este conceito. A lagarta se metamorfoseia/transfigura numa borboleta. Ela sofre uma mudança de forma, de aparência, sem contuto, perder sua essência. Talvez, poderíamos dizer que a lagarta se transfigura naquilo que ela verdadeiramente é.


Além do paralelo em Mt 17, 2, temos também o uso do mesmo verbo nas seguintes passagens: Romanos 12, 2, “Não se amoldem às estruturas deste mundo, mas transformem-se (metamorfoseiem-se) pela renovação da mente, afim de distinguir qual é a vontade de Deus...”; e em 2 Coríntios 3, 18, “E nós que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados (metamorfoseados) nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente pela ação do Senhor, que é Espírito.” Vale a pena conferir o contexto destas passagens. Aqui, queremos apenas ampliar o conceito do verbo transfigurar, para torná-lo mais compreensível e mais próximo da nossa experiência.


Senhor Jesus Cristo,
vós que se transformastes diante de Pedro, Tiago e João,
ajudai-nos a viver esta quaresma
como um tempo oportuno
para uma verdadeira metamorfose interior,
que nos leve a transfigurar o mundo
pela ação da justiça e do amor.
Amém.



domingo, 1 de março de 2009

Deserto (I DQ - B)

Em seguida, o Espírito impeliu Jesus para o deserto. (Mc 1, 12)

Ao remoer esta frase do Evangelho, descobrimos o sentido mais profundo de suas palavras. “Em seguida” é a tradução da expressão grega kαὶ εὐθὺς (conjunção e advérbio, respectivamente), literalmente, “e em linha direta/reta”, geralmente traduzida como “e imediatamente.” O advérbio εὐθὺς é muito usado no Evangelho de Marcos: 43 vezes! Sendo 11 vezes, apenas no primeiro capítulo. Ele ecoa a mensagem da voz profética de Mc 1: 3, “... Preparem o caminho do Senhor, endireitem suas estradas!”. “Endireitem” é a tradução de εὐθείας ποιεῖτε, literalmente, “façam direitas” (façam em linhas retas) suas estradas.” Assim temos, “Em linha direta/imediatamente, o Espírito impeliu Jesus para o deserto. A repetição desta expressão “em linha direta” (ou imediatamente) confere sentido de urgência à narrativa do Evangelho. Vejam: “Eles imediatamente deixaram suas redes,” (1:18); “Jesus imediatamente os chamou,” (1:20); “imediatamente, no sábado, Jesus entrou na sinagoga e começou a ensinar,” (1:21); “Imediatamente, estava na sinagoga um homem possuído...” (1: 23); etc.

Já a palavra “deserto”, ἔρημον, evoca forte simbolismo bíblico, que tem raiz na experiência do Povo de Deus narrada no livro do Êxodo (13, 17ss). O deserto é um lugar teológico. Ele representa a passagem (páscoa) que o Povo fez da escravidão do Egito à liberdade da Terra Prometida. Ele foi o lugar da tentação, do desânimo e até da idolatria. Mas, foi também o lugar onde Deus falou, corrigiu e orientou. Antes de chegar à Terra Prometida, no deserto, o Povo precisou aprender a ser livre, a não olhar para trás e a construir “uma outra sociedade possível.” Além disso, o deserto foi o lugar da Aliança com o Deus Libertador, onde o Povo, já não mais escravo, decidiu livremente selar a aliança com o Deus da Vida, adquirindo uma nova identidade, “... Se me obedecerem e observarem a minha aliança, vocês serão minha propriedade especial entre todos os povos... Serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19, 5-6).

Finalmente, notem que é o Espírito que move Jesus para o deserto; o mesmo Espírito que acabara de descer sobre ele no batismo (1: 10). Aqui, o Espírito é o sujeito. E ele, ao levar Jesus para deserto, o prepara para a missão evangelizadora.

Na comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, a jornada quaresmal retoma e atualiza a experiência de Jesus Cristo no deserto e revive a jornada do Povo de Deus. Hoje a missão da Igreja não é menos urgente de que outrora, basta atentar-se para tantas “Galiléias,” que suspiram e anseiam por boas notícias. Ao conduzir-nos para o deserto, o Espírito nos desafia a encarar os nossos demônios interiores e exteriores para sermos “pascalizados,” isto é, transformados, pelas águas do batismo, no Cristo Ressuscitado.

Ó Espírito de ousadia e ternura,
vós que imediatamente impelistes Jesus para o deserto,
impulsionai-nos também para o deserto quaresmal.
Que esta quaresma faça ressurgir em nós,
a imagem do próprio Cristo,
que o batismo um dia nos conferiu.
Pelo mesmo Cristo, nosso Senhor.
Amém.